sábado, 19 de maio de 2012

Semeando Livros


Me peguei pensando sobre a leitura e como ela transforma o homem e a sociedade em que ele vive. Fiz um esforço danado para lembrar do momento em que começei a gostar da leitura e não me recordo, parece que esse momento perdeu-se nas dobras de minha memória. Em nosso país, infelizmente, livro é um artigo de luxo, extremamente caro e, apesar das facilidades da vida moderna, ainda de difícil acesso. As livrarias são poucas em nossa região, o que é inacreditável para uma região de aproximadamente um milhão de habitantes (talvez exagero), as bibliotecas menos ainda. Aqui em nossa cidade, conta-se nos dedos de uma mão e sobram dedos.
Mas, ainda assim, existem teimosos como eu que remam contra a maré e gostam de ler. Tenho um acervo pequeno de livros, gostaria de ter muito mais, mas em virtude dos preços isso não é possível. Pensei: livro lido fica em prateleiras... conhecimento absorvido... e agora? Em minha opinião livro em prateleira é livro morto... É preciso fazer circular o que eles têm a dizer, por mais besta que seja. Então, resolvi disponibilizar alguns títulos de minha coleção para os leitores do blog, como ainda os estou catalogando, esse processo deve demorar um tempo, conto com a paciência de vocês.
Mas a coisa vai funcionar assim: vou disponibilizar um título, aí quem se interessar manda um email pra mim com alguns dados (estou tentado me tornar um pouco mais organizado) dizendo que gostaria de pegar emprestado o livro, e eu dou um jeito de fazer chegar até ele(a). Lida a obra, o leitor fará chegar a outra pessoa que por ventura tenha interesse e que esteja na fila por aquela obra e ai vai.
O primeiro título que estou disponibilizando é "A miserável revolução das classes infames" de Décio Freitas. "Décio Freitas que foi o maior historiador dos excluídos nascido no Rio Grande do Sul, além de ser advogado, procurador da República, exilado político e jornalista. Foi responsável pelo resgate da história do quilombo de Palmares e de Zumbi, maior expoente daquela comunidade que resisitiu brava e heróicamente ao julgo escravista.
Décio Freitas obteve um conjunto de cartas escrita por Jean-Jacques Berthier no final do século XVIII e início do século XIX, momentos históricos relativos à fase final da Revolução Francesa e da Cabanagem; este um movimento popular que tomou o poder de forma efetiva no Pará." (http://ex-direitoeesquerdo.blogspot.com.br/2010/01/miseravel-revolucao-das-classes-infames.html)

Segue abaixo um pequeno trecho da obra:
“Apinhados no porão, os prisioneiros mal podem mover os braços. Transpiram copiosamente, sentem dores violentas na cabeça e no peito. Numa vozeria desesperada, suplicam água. Passada mais ou menos uma hora, abre-se a escotilha e joga-se água numa grande tina. A decisão foi do imediato, insubordinando-se contra o comandante, que quer deixá-los morrer de sede. A água tirada do rio é turva e insalubre. De novo joga-se água pela escotilha. Como todos querem ao mesmo tempo chegar à tina, explode um tumulto infernal. Depois de beber a água, alguns perdem os sentidos, outros sentem dores ainda mais violentas na cabeça e no peito. Põem-se inteiramente nus, abanam-se com roupas e chapéus. Lançam-se contra o costado da embarcação para lamber a umidade. Na luta por espaço e ar, gastam a restante energia. [...] Dezenas de prisioneiros sucumbem, espezinhados na luta por água. Muitos são acometidos de febre ardente e se matam golpeando a cabeça no piso do porão.
O bramido que se ouve no convés é tão terrível que os marujos dão sinais de descontentamento. Temendo um motim, o comandante resolve fazer cessar o bramido, ordenando tiros de fuzil para dentro do porão. Ato contínuo manda despejar grande quantidade de cal e correr a escotilha. Agora o porão está hermeticamente fechado.”

Então é isso, por ora esse projeto vai se chamar "Semeando Livros", em homenagem ao poema de Castro Alves "O livro e a América":

Por isso na impaciência
Desta sede de saber,
Como as aves do deserto
As almas buscam beber...
Oh! Bendito o que semeia
Livros... livros à mão cheia...
E manda o povo pensar!
O livro caindo n'alma
É germe — que faz a palma,
É chuva — que faz o mar.


Meu email para contato: cavalcantedede@hotmail.com
Dados necessários para empréstimo de livros: nome, apelido, endereço, telefone (celular) e email.

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Construir povos

Aprender com os mestres... Entender seus pensamentos e suas visões sobre os fatos do cotidiano e, claro, crescer com isso, é um dos objetivos dos textos que tenho postado aqui no blog. Algumas vezes temos opiniões similares, mas devido à minha deficiência e falta de disciplina na arte de escrever, de me expressar, falho em minhas colocações e acabo por não conseguir dizer coisa alguma.  Quero e tento escrever sobre algo e acabo, nos clássicos, encontrando, coisa muito melhor, mais bem elaborada e que reproduz com muita fidelidade o meu pensar. É assim com Rubem Alves. Parece sempre ter a palavra certa sobre tudo, então nada melhor do que beber de sua fonte. Sei e entendo que o assunto é controverso, principalmente no contexto social e político em que vivemos, em que os ânimos se acirram e cerram-se fileiras de todos os lados, muros ideológicos tem separado amigos e familiares, teimo em sonhar com um "povo", um bem comum, partilhado e dividido, talvez seja utopia, então sou utópico e sonho que todas as obras sirvam não como motivo de separação, mas de aproximação, se é que isso é possível. O texto abaixo é do ano de 2002, mas extremamente atual, e não tem a finalidade de exaltar ou denegrir os "fazedores de obras", mas tentar despertar em nós os "fazedores de povos".
Boa leitura.

Construir povos

    Não me recordo de nenhuma obra que Gandhi tenha inaugurado. Mas me lembro bem de outros gestos seus. Como uma longa caminhada que fez rumo ao mar, quando tinha 61 anos de idade. Mais de quatrocentos quilômetros, 24 dias, 18 quilômetros por dia. Para quê? A Inglaterra, potência colonial dominadora, proibira que os indianos possuíssem qualquer sal que não lhes tivesse sido vendido pelo monopólio governamental inglês. Gandhi resolveu caminhar até o mar para ali transgredir a vontade dos dominadores: tomar nas mãos o sal que o mar e o sol haviam colocado sobre as rochas. Gesto mínimo, fraco, que não seria marcado por nenhuma fita cortada nem por nenhuma placa de bronze. Há situações em que a quebra da lei é a única forma de ser íntegro. Bem que poderia ter ido em lombo de animal ou vagão de trem. Seria mais rápido, mais cômodo. Os políticos que se prezam têm horror a lentidão. Por isso se concedem atributos divinos de onipresença: agora estão aqui, mas num abrir de olhos estão ali. Voam pelos espaços para se fazer ver e inaugurar... Gandhi pensava diferente. Sabia que a vida cresce devagar.

                  Mundos melhores não se fazem; eles nascem...
                                                                                             (E. E. Cumings).
     Não queria inaugurar alguma coisa. Queria gerar um povo. E isso leva tempo, como uma gravidez. Era preciso que a Caminhada demorasse, para que as pessoas caminhassem com ele e, com ele, sonhassem. E, enquanto ele ia, crescia na alma do seu povo o sonho...
     Também não me recordo de nenhuma obra que Martin Luther King Jr. tenha inaugurado. Mas me lembro do seu rosto sereno por fora, amedrontado por dentro. Quem não teria medo do ódio dos brancos? Marchava de mãos vazias, mãos dadas e, qual num poema, seu refrão se repetia: “Eu tenho um sonho.” Queria também gerar um povo e sabia que um povo acontece quando se dão as mãos em busca de um sonho comum. “Eu tenho um sonho.” Era o sonho de um povo que se formava, lagarta que saía do casulo, para voar como borboleta. Eram palavras mágicas que evocavam esperanças esquecidas e invocavam utopias de um mundo novo. Não inaugurou obras. Pois sabia que, antes delas, é preciso que haja um povo.
     Pensei, então, há dois tipos de políticos:
  • os que se oferecem aos olhos do povo;
  • e os que oferecem novos olhos ao povo.
     Os primeiros ficam cada vez mais visíveis. Suas imagens produzidas-polidas-ensaiadas aparecem nos jornais, nos cartazes, na TV e, como a madrasta da Branca de Neve, não se cansam de perguntar: “Espelho, espelho meu, haverá neste país político mais bonito que eu?” E fazem promessas, e inauguram obras, e se proclamam como aqueles que têm o poder de transformar os desejos do povo em realidade. “Tudo isto será teu”, disse o Diabo ao Filho de Deus, “se prostrado me adorares...” E assim, pela sedução das coisas que se dão, as pessoas se vendem por preço baixo. Como na estória bíblica, troca-se a dignidade de se ser filho por um prato de ervilhas. E o povo, então, fica fraco, pedinte, agradecido. Em resumo: eleitorado fiel.
     Mas os líderes que inauguram povos são de outro tipo. Vão ficando, progressivamente invisíveis. Como na tela de Salvador Dalí, A última ceia. O cenário é vítreo e se abre pra as montanhas, para os mares, para o futuro. O próprio Filho de Deus está em via de desaparecer, transparente, para que através de sua invisibilidade o mundo inteiro possa ser visto. Assim são os lideres que inauguram povos. Sabem que o que importa não é que sejam vistos pelo povo, mas que o povo possa ter um mundo novo através deles. Não se preocupam com a admiração narcísica de sua imagem. Mas desejam muito que o povo aprenda a admirar horizontes novos para onde caminhar.
     Mas os inauguradores de obras, por não sonharem os sonhos do povo, em cada obra que inauguram, inauguram-se a si mesmos – e tratam de gravar-se em placas de metal pois sabem que, se não fosse o bronze, seriam logo esquecidos.
     Tento descobrir transparências nos rostos políticos. Pergunto-me sobre os sonhos que eles me fazem sonhar. Mas só tenho pesadelos: rostos opacos que obstruem horizontes.
E assim, fico à espera: quando o rosto, e o corpo, e os gestos, e as cicatrizes de batalhas passadas me fizerem sorrir, sentirei que posso confiar. Por quanto tempo esperarei? Não sei...
Alves, Rubem – Conversas sobre política – Campinas, SP: Verus, 2002.

sexta-feira, 11 de maio de 2012

"Mais pesado que o céu"

"A PRIMEIRA VEZ QUE ELE VIU O CÉU foi exatamente ás seis horas e cinqüenta e sete minutos depois do momento mesmo em que uma geração inteira se apaixonou por ele.
     Foi, sem dúvida alguma, sua primeira morte, e apenas a primeira de muitas pequenas mortes que se seguiriam.Para a geração enamorada por ele, era uma devoção apaixonada, poderosa e obrigatória — o tipo de amor que logo de inicio você sabe que está predestinado a partir seu coração e terminar como uma tragédia grega."


Com essa pequena e poética introdução de Charles R. Cross, já é possível perceber o que vem pela frente. Um passeio, como um espectador privilegiado pela vida íntima de Kurt Cobain, desde o nascimento até sua trágica morte aos 27 anos. A formação da banda Nirvana, os cenários em que foram compostas as músicas de maiores sucessos, enfim, lança uma luz sobre a personalidade altamente complexa do vocalista e líder de um dos maiores fenômenos musicais dos anos 90. A leitura por vezes é densa, abafada, angustiante, como os momentos em que o protagonista passava, povoada das inquietações, anseios e visões, distorcidas ou lúcidas. É também um tour pela devastação que as drogas causam nas mentes atormentadas de visionários, em seus familiares e amigos. Se já era fã do Nirvana, a leitura fez com que esses elos invisiveis fossem ampliados, mas acredito, que mesmo para quem não é fã da música do grupo, vale a leitura. É possível encontrar na rede a versão em PDF do livro.
Bom fim de semana.

terça-feira, 8 de maio de 2012

Os olhos não têm cerca!


Questionamentos sobre a liberdade, oriundos do filósofo Manezim

Existem situações na vida em que nos deparamos com perguntas que, pelo menos aparentemente, já estavam respondidas. Uma delas é a questão da liberdade. Falar em liberdade é falar de muita coisa, e de muita coisa vaga. A primeira sensação ou impressão vaga vem da própria definição do vocábulo: afinal, o que é liberdade? Aprofundar tal questionamento, permite verificar o quão ambiguo é o termo. Senão vejamos: para Bauman "numa situação de liberdade podemos fazer o que numa situação diferente seria impossível. Podemos fazer o que quisermos, sem receio de sermos punidos, presos, torturados, perseguidos."(Bauman, 1989). Dessa definição já percebemos o seu oposto, a falta de liberdade e a necessidade de ligação do termo com o "ato" ou com a "atuação" em determinado contexto. Vários termos saltam imediatamente ao olhos: fazer, deixar de fazer, permitido e proibido e suas variações.
O mesmo autor, na mesma obra, alerta para o fato do termo estar intimamente conectado à noção de responsabilidade. Significa que nossos atos livres são de nossa inteira responsabilidade. Podemos buscar nossos objetivos, e nessa busca advém o direito de errar. Ser livre implica que ninguém possa impedir nossas ações quando as desejamos colocar em prática. No entanto, não existem garantias que o que almejamos dará o resultado que precisamos ou mesmo qualquer resultado.
Como estou escrevendo fortemente inflenciado pela obra de Bauman, o texto estará repleto de sua marca. O mesmo alerta que: "a ausência de proibição ou de sanções punitivas é, de fato, condição necessária mas não suficiente para atuarmos de acordo com os nossos desejos." (Bauman, 1989). Podemos querer mudar de lugar, cidade, estado país e, no entanto, não termos o dinheiro suficiente para o fazê-lo. Desse modo, a simples ausência de restrições, ou proibições, não define adequadamente o termo "liberdade".
São questionamentos por demais importantes nesse momento de ambiguidade em que vivemos. As pessoas se proclamam livres e cantam aos quatro ventos tão condição. Muitas vezes não nos damos conta do que está embutido em tais discursos, como o fato de algo depender, só e somente só, do desejo íntimo de cada um. Existem freios invisiveis, quase imperceptiveis à nossa volta, nos cercando, moldado nossa vida de forma sutil e às vezes de forma arrebatadora.
Mas quero voltar à frase do filósofo Manezim: os olhos não tem cerca! É possível moldar o pensamento do homem em uma sociedade, de tal forma que ele pensando ser livre, estará de fato preso por este pensamento? Ou no dizer do filósofo é impossível cerca os olhos (já que eles são as portas da alma e consequentemente do pensamento)?
É possível impor, através de sanções ou proibições, mais ou menos nítidas, a conduta, o jeito de ser e de viver de uma pessoa, ou estando essa na ausência de tais proibições agirá de acordo com sua vontade, independentemente dos resultados de tal comportamento? Fica o questionamento para os seres que se consideram livres (!?).

Fonte: Bauman, Zigmunt - A liberdade - Editorial Estampa, Ltda, Lisboa, 1989 e Manezim.
Foto: Dedé Cavalcante
Modelo: Gutiara Bezerra
(agradecimentos especiais pela paciência de posar para este pequeno ensaio)

quarta-feira, 2 de maio de 2012

"Sou obrigado a votar..."

Realmente não adianta... Pra qualquer lado que a gente se vire em Caririaçu, pra qualquer lugar que se vá, o assunto é um só: a sucessão municipal que se anuncia neste ano. Isso mesmo: já estamos respirando política 24 horas por dia. Antecipadamente. Os arautos desses tempos se alvoroçam em separar quem é de qual lado e porque. Soldados intelectuais, usando um termo de meu amigo Francisco Souza, preparam suas armas ideológicas: uns proclamam obras e grandes feitos, outros apontam falhas e defeitos em todos os lugares... Não dá para negar, sentimos antecipadamente aquele breve momento antes da cortina se abrir e o show começar. E que show meus amigos e amigas leitores desse blog. Já se anunciam apostas aos quatro ventos, proclamam-se vencedores e vencidos... para os primeiros a glória e as benesses da vitória, creio que todos me entendem, para os demais "pêia", basta olhar as redes sociais, estão repletas de ameaças, algumas veladas outras bastante explicitas. Portanto, não falarei muito nesse momento desse estado de coisas, mas gostaria que refletissemos sobre a obrigatoriedade do ato de votar... E sobre isso encontrei esse maravilhoso texto (na minha opinião) do mestre Rubem Alves. Vale a pena refletir.
Boa leitura.

SOU OBRIGADO A VOTAR...    
     Era uma manhã luminosa e fresca. Pais, mães, crianças, namorados, velhos... todos tiveram a mesma idéia: o parque. E o parque se encheu de alegria. Era uma felicidade geral...
     Mas, de repente, uma coisa estranha aconteceu, parecia um pesadelo, um cenário montado por Kafka. O parque se encheu de figuras bizarras, vindas não se sabe de onde; usavam máscaras, na maioria sorridentes, falavam todos ao mesmo tempo, gritavam, acusavam-se, ofendiam-se, montavam cenas de teatro, tentavam atrais um público, diziam todos as mesmas coisas, haviam decorado o mesmo script, certamente eram artistas de algum teatro.
     Alguns, dentre aqueles que haviam ido ao parque, vendo frustradas suas esperanças de tranquilidade, procuravam silencio dentro de grutas. Inutilmente. Havia televisões e alto-falantes em todos os lugares. Não se conformando, foram se queixar aos guardas. Argumentaram que espetáculo bizarro, grotesco e barulhento como aquele não podia ser permitido. Os guardas não fizeram nada. Disseram que os artistas tinham permissão das autoridades.
     Desesperados, resolveram voltar às suas casas. Mas os portões haviam sido fechados. E neles estava um aviso: “Os portões só serão abertos depois que todos aplaudirem e pagarem pelo espetáculo. Os que se recusarem a aplaudir e a pagar serão severamente punidos.”
     Não é necessário explicar. É uma parábola da nossa situação política. Esforço-me para pensar com clareza. Frequentemente consigo. Mas diante do espetáculo pré-eleitoral minha razão entra em colapso. Fogem-me as ideias coerentes. Invoco, em meu socorro, aqueles que pensaram racionalmente sobre a política: Platão, Aristóteles, santo Agostinho, Maquiavel, Tocqueville. Suas ideias são maravilhosas. Mas não me ajudam. O que acontece no Brasil está muito além da imaginação.
     Nossa política não pode ser entendida com cabeça de filósofo. Só pode ser entendida com cabeça de bufão. George Orwell chegou a conclusão semelhante. Por isso, deixando de lado o discurso filosófico adotou o estilo do humor. Escreveu o livro Animal Farm (em português apareceu como a revolução dos bichos). A sabedoria só pode ser aprendida e dita com o riso. É a estória de uma fazenda em que a bicharada resolveu fazer uma revolução democrática contra o fazendeiro. Nada mais racional. Mas quem leu o livro se lembra do final: o cavalo, que fazia o trabalho pesado, termina seus dias numa fábrica de mortadela, enquanto os gordos porcos, liderança política, assumem democraticamente o poder em alianças secretas com o fazendeiro deposto.
     Minha vontade era de sair do parque. Mas o portão estava fechado. Fui obrigado a participar da farsa. O que me deixou furioso: o ato de participação implicava em que desse o meu aval ao jogo. Mas eu sabia que os dados estavam viciados.
     Relutantemente decidi-me, então, a entrar no jogo. Abandonei os filósofos. Vesti minha fantasia de bufão. Aconselhado por Ulisses, o herói grego, entupi meus ouvidos com cera. Não queria escutar nada do que se falava. Na política não se pode acreditar no que se fala. Além disso, tomei a decisão de tornar-me analfabeto. Queria poupar-me do sofrimento de entender o que se escrevia. Esta era uma ocasião em que as palavras nada significam.
     A política não é o jogo da verdade. Na política o que importa não é ser, mas parecer ser. Política não se faz com verdade. Política se faz com imagens. Gastou-se uma fortuna para corrigir o sorriso do Carter, quando este se candidatou à presidência dos States. Para a cabeça do eleitor um detalhe de um sorriso pesa mais que uma ideologia. Collor foi eleito porque, aos olhos do eleitorado, ele era mais bonito que o Lula. A maioria dos pais queria ter filhos parecidos com o Collor e não com o Lula. O povo, essa unidade amorfa sobre a qual se assenta a democracia, não é racional.
     Dentre todos os candidatos, um deles chamou a minha atenção pelo seu profundo conhecimento intuitivo da psicologia do eleitorado. Não colocou, nos outdoors que o anunciam nem promessas nem fotografias coloridas. Colocou apenas, ao lado do seu número e do apelido diminutivo por que é conhecido, uma bola de futebol. Quadriculada em preto e branco. Ele sabe que a psicologia do eleitorado é a psicologia da torcida. A psicologia da torcida ignora as ideias e ética. Por amor ao nosso time todos os crimes são permitidos. “Vote em mim! Será um gol para o nosso time!” – é isso que o outdoor do referido candidato está dizendo. Será reeleito pela torcida.
     Surdo a tudo o que dizem os candidatos, limito-me a observar as imagens. Aquele é o bufão-mor, ator consumado. Sabe representar todos os papéis. Na igreja católica faz sinal-da-cruz, em igreja evangélica levanta a mão e fecha os olhos, em candomblé, imagino, aceitaria ser cavalo de orixá. Sua ousadia não tem limites. Tocador de piano em horas vagas, em gestão anterior arranjou para que, num concerto para seis pianos e orquestra, ele fosse um dos seis pianistas ao lado de cinco consagrados pianistas brasileiros.
     Um outro gostava de posar de pregador evangélico, com a Bíblia na mão. Candidato com a Bíblia na mão está dizendo: “Tenho ligação direta com Deus.” Exorcizo. Quem acredita ter ligações diretas com Deus não precisa ter ligações com os homens. Se sei o que Deus deseja, por que perder meu tempo com aquilo que os homens desejam? Todo político que cita Deus é um ditador em potencial.
     Um outro conquistou fama extraordinária. Um jornal inglês, o Times, se não me engano, produziu um livro com as biografias das personalidades que moldaram o século XX: Einstein, Freud, Hitler, Fleming, Albert Schweitzer, Churchill, Kennedy – ao lado de muitos outros,em ordem alfabética. O livro foi traduzido para o português. Ai algo inexplicável e extraordinário aconteceu. O nome do referido político apareceu milagrosamente no lugar daquele que se lá se encontrava na edição inglesa, ocupando mais espaço que a biografia de Kennedy. Que santo terá operado tal milagre?
     Os outros sobre os quais não tenho nenhum portento circense a relatar não me provocam entusiasmo. Fico indiferente. Não acredito. Votarei num deles, como autômato.
     Imagine se você quer construir uma casa. Procura três firmas de arquitetura. Você diz o que deseja e quais são os seus recursos. Elas preparam projetos. O primeiro é lindo: você se entusiasma. Mas é caro demais. Faltam-lhe os recursos. A segunda empresa começa por lhe dizer quanto vai custar a obra. Você se alegra porque o projeto está dentro do seu orçamento. Mas, quando vê o projeto, o seu entusiasmo se vai. É um horror. O terceiro não é grandioso como o primeiro, mas você gosta dele. E para ele você tem os recursos. Esse é o projeto que você escolhe.
     Democracia deve ser assim. Os partidos são os construtores. Cada um deve apresentar um projeto da casa-país que se propõe a construir. A democracia começa quando o eleitor escolhe o projeto menos ruim. Acontece que eu não tenho idéia alguma do projeto inteiro. Algum político terá? O que prometem são maçanetas, janelas, fechaduras, telhados, pias, privadas. Nada me dizem da casa inteira nem de onde vão tirar os recursos para a construção. Todos prometem a mesma coisa: segurança, estradas, indústrias, empregos, educação, saúde... Mas... qual é o projeto?
     Não quero votar. Não quero dar meu aval ao processo. Mas sou obrigado a votar. Será um voto triste, sem entusiasmo e sem esperanças de ver construída a casa-país com que sonho.

ALVES, Rubem – Conversas sobre política – Campinas, SP: Verus, 2002