Realmente não adianta... Pra qualquer lado que a gente se vire em Caririaçu, pra qualquer lugar que se vá, o assunto é um só: a sucessão municipal que se anuncia neste ano. Isso mesmo: já estamos respirando política 24 horas por dia. Antecipadamente. Os arautos desses tempos se alvoroçam em separar quem é de qual lado e porque. Soldados intelectuais, usando um termo de meu amigo Francisco Souza, preparam suas armas ideológicas: uns proclamam obras e grandes feitos, outros apontam falhas e defeitos em todos os lugares... Não dá para negar, sentimos antecipadamente aquele breve momento antes da cortina se abrir e o show começar. E que show meus amigos e amigas leitores desse blog. Já se anunciam apostas aos quatro ventos, proclamam-se vencedores e vencidos... para os primeiros a glória e as benesses da vitória, creio que todos me entendem, para os demais "pêia", basta olhar as redes sociais, estão repletas de ameaças, algumas veladas outras bastante explicitas. Portanto, não falarei muito nesse momento desse estado de coisas, mas gostaria que refletissemos sobre a obrigatoriedade do ato de votar... E sobre isso encontrei esse maravilhoso texto (na minha opinião) do mestre Rubem Alves. Vale a pena refletir.
Boa leitura.
SOU OBRIGADO A VOTAR...
Era uma manhã luminosa e fresca. Pais, mães, crianças, namorados, velhos... todos tiveram a mesma idéia: o parque. E o parque se encheu de alegria. Era uma felicidade geral...
Mas, de repente, uma coisa estranha aconteceu, parecia um pesadelo, um cenário montado por Kafka. O parque se encheu de figuras bizarras, vindas não se sabe de onde; usavam máscaras, na maioria sorridentes, falavam todos ao mesmo tempo, gritavam, acusavam-se, ofendiam-se, montavam cenas de teatro, tentavam atrais um público, diziam todos as mesmas coisas, haviam decorado o mesmo script, certamente eram artistas de algum teatro.
Alguns, dentre aqueles que haviam ido ao parque, vendo frustradas suas esperanças de tranquilidade, procuravam silencio dentro de grutas. Inutilmente. Havia televisões e alto-falantes em todos os lugares. Não se conformando, foram se queixar aos guardas. Argumentaram que espetáculo bizarro, grotesco e barulhento como aquele não podia ser permitido. Os guardas não fizeram nada. Disseram que os artistas tinham permissão das autoridades.
Desesperados, resolveram voltar às suas casas. Mas os portões haviam sido fechados. E neles estava um aviso: “Os portões só serão abertos depois que todos aplaudirem e pagarem pelo espetáculo. Os que se recusarem a aplaudir e a pagar serão severamente punidos.”
Não é necessário explicar. É uma parábola da nossa situação política. Esforço-me para pensar com clareza. Frequentemente consigo. Mas diante do espetáculo pré-eleitoral minha razão entra em colapso. Fogem-me as ideias coerentes. Invoco, em meu socorro, aqueles que pensaram racionalmente sobre a política: Platão, Aristóteles, santo Agostinho, Maquiavel, Tocqueville. Suas ideias são maravilhosas. Mas não me ajudam. O que acontece no Brasil está muito além da imaginação.
Nossa política não pode ser entendida com cabeça de filósofo. Só pode ser entendida com cabeça de bufão. George Orwell chegou a conclusão semelhante. Por isso, deixando de lado o discurso filosófico adotou o estilo do humor. Escreveu o livro Animal Farm (em português apareceu como a revolução dos bichos). A sabedoria só pode ser aprendida e dita com o riso. É a estória de uma fazenda em que a bicharada resolveu fazer uma revolução democrática contra o fazendeiro. Nada mais racional. Mas quem leu o livro se lembra do final: o cavalo, que fazia o trabalho pesado, termina seus dias numa fábrica de mortadela, enquanto os gordos porcos, liderança política, assumem democraticamente o poder em alianças secretas com o fazendeiro deposto.
Minha vontade era de sair do parque. Mas o portão estava fechado. Fui obrigado a participar da farsa. O que me deixou furioso: o ato de participação implicava em que desse o meu aval ao jogo. Mas eu sabia que os dados estavam viciados.
Relutantemente decidi-me, então, a entrar no jogo. Abandonei os filósofos. Vesti minha fantasia de bufão. Aconselhado por Ulisses, o herói grego, entupi meus ouvidos com cera. Não queria escutar nada do que se falava. Na política não se pode acreditar no que se fala. Além disso, tomei a decisão de tornar-me analfabeto. Queria poupar-me do sofrimento de entender o que se escrevia. Esta era uma ocasião em que as palavras nada significam.
A política não é o jogo da verdade. Na política o que importa não é ser, mas parecer ser. Política não se faz com verdade. Política se faz com imagens. Gastou-se uma fortuna para corrigir o sorriso do Carter, quando este se candidatou à presidência dos States. Para a cabeça do eleitor um detalhe de um sorriso pesa mais que uma ideologia. Collor foi eleito porque, aos olhos do eleitorado, ele era mais bonito que o Lula. A maioria dos pais queria ter filhos parecidos com o Collor e não com o Lula. O povo, essa unidade amorfa sobre a qual se assenta a democracia, não é racional.
Dentre todos os candidatos, um deles chamou a minha atenção pelo seu profundo conhecimento intuitivo da psicologia do eleitorado. Não colocou, nos outdoors que o anunciam nem promessas nem fotografias coloridas. Colocou apenas, ao lado do seu número e do apelido diminutivo por que é conhecido, uma bola de futebol. Quadriculada em preto e branco. Ele sabe que a psicologia do eleitorado é a psicologia da torcida. A psicologia da torcida ignora as ideias e ética. Por amor ao nosso time todos os crimes são permitidos. “Vote em mim! Será um gol para o nosso time!” – é isso que o outdoor do referido candidato está dizendo. Será reeleito pela torcida.
Surdo a tudo o que dizem os candidatos, limito-me a observar as imagens. Aquele é o bufão-mor, ator consumado. Sabe representar todos os papéis. Na igreja católica faz sinal-da-cruz, em igreja evangélica levanta a mão e fecha os olhos, em candomblé, imagino, aceitaria ser cavalo de orixá. Sua ousadia não tem limites. Tocador de piano em horas vagas, em gestão anterior arranjou para que, num concerto para seis pianos e orquestra, ele fosse um dos seis pianistas ao lado de cinco consagrados pianistas brasileiros.
Um outro gostava de posar de pregador evangélico, com a Bíblia na mão. Candidato com a Bíblia na mão está dizendo: “Tenho ligação direta com Deus.” Exorcizo. Quem acredita ter ligações diretas com Deus não precisa ter ligações com os homens. Se sei o que Deus deseja, por que perder meu tempo com aquilo que os homens desejam? Todo político que cita Deus é um ditador em potencial.
Um outro conquistou fama extraordinária. Um jornal inglês, o Times, se não me engano, produziu um livro com as biografias das personalidades que moldaram o século XX: Einstein, Freud, Hitler, Fleming, Albert Schweitzer, Churchill, Kennedy – ao lado de muitos outros,em ordem alfabética. O livro foi traduzido para o português. Ai algo inexplicável e extraordinário aconteceu. O nome do referido político apareceu milagrosamente no lugar daquele que se lá se encontrava na edição inglesa, ocupando mais espaço que a biografia de Kennedy. Que santo terá operado tal milagre?
Os outros sobre os quais não tenho nenhum portento circense a relatar não me provocam entusiasmo. Fico indiferente. Não acredito. Votarei num deles, como autômato.
Imagine se você quer construir uma casa. Procura três firmas de arquitetura. Você diz o que deseja e quais são os seus recursos. Elas preparam projetos. O primeiro é lindo: você se entusiasma. Mas é caro demais. Faltam-lhe os recursos. A segunda empresa começa por lhe dizer quanto vai custar a obra. Você se alegra porque o projeto está dentro do seu orçamento. Mas, quando vê o projeto, o seu entusiasmo se vai. É um horror. O terceiro não é grandioso como o primeiro, mas você gosta dele. E para ele você tem os recursos. Esse é o projeto que você escolhe.
Democracia deve ser assim. Os partidos são os construtores. Cada um deve apresentar um projeto da casa-país que se propõe a construir. A democracia começa quando o eleitor escolhe o projeto menos ruim. Acontece que eu não tenho idéia alguma do projeto inteiro. Algum político terá? O que prometem são maçanetas, janelas, fechaduras, telhados, pias, privadas. Nada me dizem da casa inteira nem de onde vão tirar os recursos para a construção. Todos prometem a mesma coisa: segurança, estradas, indústrias, empregos, educação, saúde... Mas... qual é o projeto?
Não quero votar. Não quero dar meu aval ao processo. Mas sou obrigado a votar. Será um voto triste, sem entusiasmo e sem esperanças de ver construída a casa-país com que sonho.
ALVES, Rubem – Conversas sobre política – Campinas, SP: Verus, 2002
3 comentários:
Dedé Parabéns pela postagem, brilhante!
Evaldo Badú
Parabéns pela postagem, brilhante!
Evaldo Badú
Lembro-me no Ceará que tivemos um “galeguim dos zói azul”. Mas, não é sobre isso que queremos falar...
A democracia é pautada pelo principio da liberdade. Então, porque o principal instrumento dela, o voto, vem disfarçado como direito para ser obrigatório? Isso é democracia ou autoritarismo? No Brasil, se o voto fosse facultativo, seria diferente?
Neste cenário, um questionamento importante permanece nos bastidores: os políticos escolhem seguir esse caminho para muitas vezes realizar um ideal individual; antes financeiro, hoje de status talvez... E quanto a nós, eleitores, onde estamos? Trancados no parque até pagar a conta? Escolhemos ou somos escolhidos devido a nossa falta de educação e de conhecimento?
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