quarta-feira, 5 de setembro de 2007
Capítulo IV - Da Escravidão (Rousseau)
"Visto que homem algum tem autoridade natural sobre seus semelhantes e que a força não produz nenhum direito, só restam as convenções como base de toda a autoridade legítima existente entre os homens.
Se um particular, diz Grotius, pode alienar sua liberdade e tornar-se escravo de um senhor, por que não o poderia fazer todo um povo e tornar-se súdito de um rei? Nessa frase existem muitas palavras equívocas a exigir explicação, mas prendamo-nos só a palavra alienar. Alienar é dar ou vender. Ora, um homem, que se faz escravo de um outro, não se dá; quando muito, vende-se pela subsistência. Mas um povo, por que se venderia? O rei, longe de prover à subsistência de seus súditos, apenas dele tira a sua e, de acordo com Rabelais, um rei não vive com pouco. Os súditos dão, pois, a sua pessoa sob a condição de que se tomem também seus bens? Não vejo o que lhe resta.
Dirão que o déspota assegura aos súditos a tranquilidade civil. Seja, mas qual a vantagem para eles, se as guerras em que são lançados pela ambição do déspota, a sua insaciável avidez, as vexações impostas pelo seu ministério os arruínam mais do que as próprias dissenções? Que ganham com isso, se mesmo essa tranquilidade é uma de duas misérias? Vive-se tranqüilo também nas masmorras e tanto bastará para que nos sintamos bem nelas? Os gregos, encerrados no antro do Ciclope, viviam tranquilos, esperando a vez de ser devorados.
Afirmar que um homem se dá gratuitamente constitui uma afirmação absurda e inconcebível; tal ato é ilegítimo e nulo, tão-só porque aquele que o pratica não se encontra no complexo domínio de seus sentidos. Afirmar a mesma coisa de todo um povo, é supor um povo de loucos: a loucura não cria direito.
Mesmo quando um pudesse alienar-se a si mesmo, não poderia alienar seus filhos, pois estes nascem homens e livres, sua liberdade pertence-lhes e ninguém, senão eles, goza do direito de dispor dela. ANtes que cheguem à idade da razão, o pai, em seu nome, pode estipular, condições para sua conservação e seu bem-estar, mas não pode dá-los irrevogável e incondicionalmente, porque uma tal doação é contrária aos fins da natureza e ultrapassa os direitos da paternidade. Seria pois necessário, para que um governo arbitrário fosse legítimo, que o povo, em cada geração, fosse senhor de aceitá-lo ou rejeitá-lo, mas, então, esse governo não mais seria arbitrário.
Renunciar à liberdade é renunciar à qualidade de homen, aos direitos da humanidade, e até aos próprios deveres. Não há recompensa possível para quem a tudo renuncia. Tal renúncia não se compadece com a natureza do homem, e destituir-se voluntariamente de toda e qualquer liberdade a excluir a moralidade de suas ações. Enfim, é uma inútil e contraditória convenção a que, de um lado, estipula uma autoridade absoluta, e, de outro, uma obediência sem limites. Não está claro que não se tem compromisso algum com aqueles de quem se tem o direito de tudo exigir? E essa condição única, sem equivalente, sem compensação, não levará à nulidade do ato? Pois que direito meu escravo terá contra mim, desde que tudo que possui me pertence e desde que, sendo meu o seu direito, esse direito meu contra mim mesmo passa a constituir uma palavra sem nenhum sentido?
Grotius e outros autores encontraram na guerra outra origem do pretenso direito de escravidão. Tendo o vencedor, segundo eles, o direito de matar o vencido, este pode resgatar a vida pelo preço da sua liberdade, convenção tanto mais legítima quanto resulta em proveito de ambas as partes.
É claro que esse pretenso direito de matar os vencidos de modo algum resulta do estado de guerra. Apenas porque, vivendo em sua primitiva independência, não mantém entre si uma relação suficientemente constante para constituir quer o estado de paz que o de guerra, os homens em absoluto não são naturalmente inimigos. É a relação entre as coisas e não a relação entre os homens que gera a guerra, e, não podendo o estado de guerra originar-se de simples relações pessoais, mas unicamente das relações reais, não pode existir a guerra particular ou de homem para homem, nem no estado de natureza, no qual não há propriedade constante, nem no estado social, em que tudo se encontra sob a autoridade das leis.
Os combates particulares, os duelos, os recontros são atos que de maneira alguma constituem um estado; quanto às guerras privadas, autorizadas pelas ordenações de Luís IX, rei da França, e suspensas pela Paz de Deus, são abusos do governo feudal, sistema absurdo, se jamais foi sistema, constrário aos princípios do Direito Natural e a qualquer boa politia.
A guerra não representa, pois, de modo algum, uma relação de homem para homem, mas uma relação de Estado para Estado, na qual os particulares só acidentalmente se tornam inimigos, não o sendo como homens, nem como cidadãos, mas como soldados, e não como membros da pátria, mas como seus defensores. Enfim, cada Estado só pode ter como inimigos outros Estados e não homens, pois que não se pode estabelecer uma relação verdadeira entre as coisas de natureza diversa.
Esse princípio está mesmo de acordo com as máximas estabelecidas em todos os tempos e com a prática constante dos povos civilizados. As declarações de guerra são avisos menos Pas potências do que aos vassalos. O estrangeiro, seja rei, particular ou povo, que rouba, mata ou detém os súditos, sem de início declarar guerra ao príncipe, não é um inimigo, é um bandido. Um príncipe justo, mesmo em plena guerra, apossa-se de tudo o que pertence ao público em país inimigo, mas respeita as pessoas e os bens dos particulares; ele respeita o direito sobre os quais os seus se fundam. Estando o fim da guerra na destruição do Estado inimigo, tem-se o direito de matar, no seu curso, os defensores enquanto estiverem de armas na mão; no mento, porém, em que as depõem e se rendem, deixando de ser inimigos ou seus instrumentos, tornam-se simplesmente homens, não mais se tendo direito à sua vida. Algumas vezes, pode-se eliminar o Estado sem matar um único de seus membros; ora, a guerra não concede nenhum direito que não os necessários à sua finalidade. Esses princípios não são os de Grotius, não se fundamentam na autoridade dos poetas, mas derivam da natureza das coisas e se fundam na razão.
Relativamente ao direito de conquista, não dispõe ele de outro fundamento além da lei do mais forte. Se a guerra não confere jamais ao vencedor o direito de massacrar os povos vencidos, esse direito que ele não tem, não poderá servir de base ao direito de escravizá-los. Só se tem o direito de matar o inimigo quando não se pode torná-lo escravo; logo, o direito de transformá-lo em escravo não vem do direito de matá-lo, constituindo, pois, troca iníqua o fazê-lo comprar, pelo preço da liberdade, sua vida, sobre a qual não se tem nenhum direito. Não é claro que se cai num círculo vicioso fundando o direito de vida e de morte no de escravidão, e o direito de escravidão no de vida e de morte?
Supondo-se mesmo a existência desse terrível direito de tudo matar, afirmo que um escravo feito na guerra ou um povo dominado não tem nenhuma obrigação para com seu senhor, senão obedecê-lo enquanto a isso é forçado. O vencedor não lhe concedeu graça ao tornar um equivalente da sua vida; em lugar de matá-lo sem proveito, matou-o utilmente. Londe, pois, de ter adquirido sobre ele qualquer autoridade além da força, persiste entre eles, como anteriormente, o estado de guerra, sendo a prórpia relação entre eles um efeito desse estado, e o gozo do direito de guerra não supõe nenhum tratado de paz. Firmaram uma convenção - seja; mas essa convenção, longe de destruir o estado de guerra, supõe sua continuidade.
Assim, seja qual for o modo de encarar as coisas, nulo é o direito de escravidão não só por ser ilegítimo, mas por ser absurdo e nada significar. As palavras escravidão e direito são contraditórias, excluem-se mutuamente. Quer de um homem a outro, quer de um homem a um povo, será sempre igualmente insensato este discurso: 'estabeleço contigo uma convenção ficando tudo a teu cargo e tudo em meu proveito, convenção essa a que obedecerei enquanto me aprouver e que tu observarás enquanto for do meu agrado'."
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2 comentários:
Os homens viviam em um estado natural, harmonioso, sadio, bons e felizes, enquanto cuidavam da sua sobrevivência; quando surgiu a necessidade da propriedade, onde uns trabalham para outros, gerando assim a desigualdade, a escravidão, a miséria - no sentido humano -, e a alienação.
Sempre estivemos escravizados, sejam por correntes, cercas elétricas, silicones, liberdade de expressão, crenças, cultura... A servidão não compõe-se como um livro - com início, meio, e fim -, ela é atemporal, independe do tempo. Não iniciou-se com a escravidão dos negros e nem cessou com a princesa boazinha que assinou a Lei Áurea.
A abolição do estado de serviçal depende dos sujeitos historicos conquistarem a liberdade, política, filosófica, religiosa..., sem que sejam incomodados pelos preconceitos por suas escolhas. Este seria o resultado da formação de um estado que tem como meta o bem comum, sem que os "homens sejam lobos de homens", sem massacres individuais, sem lutas egocêntricas, e nem tribunais especiais estilo Renan Calheiros, sem sufocar liberdades individuais, desde que essas "liberdades" não sufoquem a liberdade dos outros sujeitos.
A luz dos comentários apresentados, o estado deverá defender o direito, a justiça, a liberdade, construidas através das convenções sociais, submetendo-se também às leis, já que o estado existe para servir e não para ser servido. Para tanto se faz urgente a disseminação do conhecimento racional e a reflexão que remonte as leis auto-impostas, não para identificarmos a constituição federal como um livro de direitos e deveres, mas, a chave para a libertação da cidadania.
" O mais livre de todos os homens é aquele que consegue ser livre na própria escravidão"
(François Fénelon)
" São a força e a liberdade que fazem os homens virtuosos. A fraqueza e a escravidão nunca fizeram nada além de pessoas más".
(Jean-Jacques-Rousseau)
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