quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Capítulo VII - Do Soberano - Rousseau


"Vê-se por essa fórmula, que o ato de associação compreende um compromisso recíproco entre o público e os particulares, e que cada indivíduo, contratando, por assim dizer, consigo mesmo, se compromete numa dupla relação: como membro do soberano em relação aos particulares, e como membro do Estado em relação ao soberano. Não se pode, porém, aplicar a essa situação a máxima do Direito Civil que afirma ninguém estar obrigado aos compromissos tomados consigo mesmo, pois existe grande diferença entre obrigar-se consigo mesmo e em relação a um todo do qual faz parte.
Impõe-se notar ainda que a deliberação pública, que pode obrigar todos os súditos em relação ao soberano, devido às duas relações diferentes segundo as quais cada um deles é encarado, não pode, pela razão contrária, obrigar o soberano em relação a si mesmo, sendo conseqüentemente contra a natureza do corpo político impor-se o soberano uma lei que não possa infringir. Não podendo considerar-se a não ser numa única e mesma relação, encontrar-se-á então no caso de um particular contratando consigo mesmo, por onde se vê que não há nem pode haver nenhuma espécie de lei fundamental obrigatória para o corpo do povo nem sequer o contrato social. Tal não significa não poder esse corpo comprometer-se com outrem, no que não derrogar o contrato, pois em relação ao estrangeiro, torna-se um ser singelo, um indivíduo.
Mas o corpo político ou o soberano, não existindo senão pela integridade do contrato, não pode obrigar-se, mesmo com outrem, a nada quie derrogue esse ato primitivo, como alienar uma parte de si mesmo ou submeter-se a um outro soberano. Violar o ato pelo qual existe seria destruir-se, e o que nada é nada produz.
Desde o momento em que essa multidão se encontra assim reunida em um corpo, não se pode ofender um dos membros sem atacar o corpo, nem, ainda menos, ofender o corpo sem que os membros se ressintam. Eis como o dever e o interesse obrigam igualmente as duas partes contratantes a se auxiliarem mutuamente, e os mesmos homens devem procurar reunir, nessa dupla relação, todas as vantagens que dela provêm.
Ora, o soberano, sendo formado tão-só pelos particulares que o compõem, não visa nem pode visar a interesse contrário ao deles, e, conseqüentemente, o poder soberano não necessita de nenhuma garantia em face de seus súditos, por ser impossível ao corpo desejar prejudicar a todos os seus membros, e veremos, logo a seguir, que não pode também prejudicar a nenhum deles em particular. O soberano, somente por sê-lo, é sempre aquilo que deve ser.
O mesmo não se dá, porém, com os súditos em relação ao soberano, a quem, apesar do interesse comum, ninguém responderá por seus compromissos, se não encontrasse meios de assegurar-se a fidelidade dos súditos.
Cada indivíduo, com efeito, pode, como homem, ter uma vontade particular, contrária ou diversa da vontade geral que tem como cidadão. Seu interesse particular pode ser muito diferente do interesse comum. Sua existência, absoluta e naturalmente independente, pode levá-lo a considerar o que deve à causa comum como uma contribuição gratuita, cuja perda prejudicará menos aos outros, do que será oneroso o cumprimento a si próprio. Considerando a pessoa moral que constitui o Estado, como um ente de razão, porquanto não é um homem, ele desfrutará dos direitos do cidadão sem querer desempenhar os deveres de súdito - injustiça cujo progresso determinaria a ruína do corpo político.
A fim de que o pacto social não represente, pois, um formulário vão, compreende ele tacitamente este compromisso, o único que poderá dar força aos outros: aquele que recusar obedecer à vontade geral a tanto será constrangido por todo um corpo, o que não significa senãoi que o forçarão a ser livre, pois é essa a condição que, entregando cada cidadão à pátria, o garante contra qualquer dependência pessoal. Essa condição constitui o artifício e o jogo de toda a máquina política, e é a única a legitimar os compromissos civis, os quais, sem isso, se tornariam absurdos, tirânicos e sujeitos aos maiores abusos."

Um comentário:

Anônimo disse...

Na sociedade só se é obrigado a obedecer aos poderes legítimos. Rousseau não entende como verdadeiro o direito do mais forte, o direito feito pela força. A soberania é uma vontade geral, com interesse comum e utilidade pública. A sociedade deve ser governada pelo contrato social. O Estado é o bem de todos o provedor da condição de convívio, de união e prosperidade. O pacto fundamental se firma por uma igualdade moral e legítima, contra aquilo que a natureza poderia trazer de desigualdade física entre os homens.