terça-feira, 25 de setembro de 2007

Capítulo IX - Do Domínio Real - Rousseau (Fim do Livro Primeiro)


"Cada membro da comunidade dá-se a ela no momento de sua formação, tal como se encontra naquele instante; ele e todas as suas forças, das quais fazem parte os bens que possui. O que não significa que, por esse ato, a posse mude de natureza ao mudar de mão e se torne propriedade nas do soberano, mas sim que, como as forças da Cidade são incomparavelmente maiores do que as de um particular, a posse pública é também, na realidade, mais forte e irrevogável, sem ser mais legítima, pelo menos para os estrangeiros. Tal coisa se dá porque o Estado, perante seus membros, é senhor de todos os seus bens pelo contrato social, contrato esse que, no Estado, serve de base a todos os direitos, mas não é senhor daqueles bens perante as outras potências senão pelo direito do primeiro ocupante, que tomou dos particulares.
O direito do primeiro ocupante, embora mais real do que o do mais forte, só se torna um verdadeiro direito depois de estabelecido o de propriedade. Todo o homem tem naturalmente direito a quanto lhe for necessário, mas o ato positivo, que o torna proprietário de qualquer bem, o afasta de tudo mais. Tomada a sua parte, deve a ela limitar-se, não gozando mais de direito algum à comunidade. Eis porque o direito do primeiro ocupante, tão frágil no estado de natureza, se torna respeitável para todos os homens civis. Por esse direito, respeita-se menos o que pertence a outrem, do que aquilo que não pertence a si mesmo.
Em geral, são necessárias as seguintes condições para autorizar o direito de primeiro ocupante de qualquer pedaço de chão: primeiro, que este terreno não esteja sendo habitado por ninguém; segundo, que dele só se ocupe a porção de que se tem necessidade para subsistir; terceiro, que dele se tome posse não por uma cerimônia vã, mas pelo trabalho e pela cultura, únicos sinais de propriedade que devem ser respeitados pelos outros, na ausência de títulos jurídicos.
Com efeito, concedendo-se à necessidade e ao trabalho o direito de primeiro ocupante, não se estará levando-o o mais longe possível? Poder-se-á não estabelecer limites para esse direito? Bastará pôr o pé num terreno comum para logo pretender ser o senhor? Bastará a força, capaz de afastar dele num momento os outros homens, para destituí-los do direito de novamente voltar a ele? Como poderá um homem ou um povo assenhorear-se de um território imenso e privar dele todo o gênero humano, a não ser por usurpação punível, por isso que tira do resto dos homens o abrigo e os alimentos que a natureza lhes deu em comum? Quando Nuñez Balboa tomou, na costa, posse de todo mar do Sul e de toda a América meridional, em nome da coroa de Castela, tanto bastaria para desapossar todos os habitantes e daí excluir todos os príncipes do mundo? Com tal razão, tais cerimônias se multiplicariam inutilmente e o rei católico não precisaria senão de inopino tomar, de seu gabinete, posse de todo o universo, apenas posteriormente excluindo de seu império o que antes possuíam os outros príncipes.
Concebe-se como as terras dos particulares reunidas e contíguas se tornam território público e como o direito de soberania, estendendo-se dos súditos ao terreno por eles ocupado, se torna, ao mesmo tempo, real e pessoal, colocando os possuidores numa dependência ainda maior e fazendo de suas próprias forças as garantias de sua fidelidade. Essa vantagem não parece haver sido muito bem compreendida pelos antigos monarcas que, intitulando-se simplesmente rei dos persas, dos citas, dos macedônios, pareciam considerar-se mais chefes dos homens do que senhores do país. Os de hoje chamam-se, mais habilmente, reis de França, da Espanha e da Inglaterra etc.; dominando assim o território, sentem-se bem seguros de aí dominar os habitantes.
O singular dessa alienação é que a comunidade, aceitando os bens dos particulares, longe de despojá-los, não faz senão assegurar a posse legítima, cambiando a usurpação por um direito verdadeiro, e o gozo, pela propriedade. Passando então os possuidores a serem considerados depositários de bem público, estando respeitados seus direitos por todos os membros do Estado e sustentados por todas as forças contra o estrangeiro, adquirem, por assim dizer, tudo o que deram por uma cessão vantajosa ao público e mais ainda a eles mesmos. O paradoxo explica-se facilmente pela distinção entre os direitos de que o soberano e o proprietário gozam sobre os mesmos bens, como se verá mais adiante.
Pode também acontecer também que os homens comecem a unir-se antes de possuir qualquer coisa e que, apossando-se depois de um terreno bastante a todos, o fruam em comum ou dividam entre si, seja em partes iguais, seja de acordo com proporções estabelecidas pelo soberano. De qualquer forma que se realize tal inquietaçao, o direito que cada particular tem sobre seus próprios bens está sempre subordinado ao direito que a comunidade tem sobre todos, sem o que não teria solidez p liame social, nem força verdadeira o exercício da soberania.
Terminarei este capítulo e este livro por uma observação que deverá servir de base a todo o sistema social: o pacto fundamental, em lugar de destruir a igualdade natural, pelo contrário substitui por uma uma igualdade moral e legítima aquilo que a natureza poderia trazer de desigualdade física entre os homens, que, podendo ser desiguais na força ou no gênio, todos se tornam iguais por convenção e direito."

2 comentários:

Anônimo disse...

Somente a partir do reconhecimento da desigualdade social como produto da sociedade, a realidade poderá ser transformada. É necessário tomar uma atitude de negação diante a subjugação de uns pelos os outros como algo natural e imutável.

Anônimo disse...

Querido amigo Dedé,

Gostaria de fazer um pedido, não sei se procede...
Já me vi várias vezes tentada a comprar o livro que você nos oferece em capítulos neste inteligente blog, mas, acho interessante conhecer assim de forma mais lenta e minuciosa tal obra. Então acho que vou protelar a compra do livro para o final das sua publicações aqui neste meio.
Meu pedido é o seguinte: gostaria de ter uma apresentação de todo o livro, em quantas e quais partes é o mesmo dividido. Isto somente para termos uma idéias do que vem pela frente. Quando leio um capítluo sempre fico esperando o próximo com ansiedade.
Um abraço!